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A Beleza é um Método, Christina Sharpe

Tradução Beauty Is a Method Original: https://www.e-flux.com/journal/105/303916/beauty-is-a-method/

A Beleza é um Método Christina Sharpe Edição #105 - Dezembro de 2019

A beleza não é um luxo, mas um modo de criar a possibilidade no espaço de recolhimento, um ato radical de subsistência, um acolhimento do nosso terrível, a transfiguração do que é dado. É uma vontade de adornar, uma proclividade pelo barroco, e um amor do excesso. —Saidiya Hartman

Palavras colocam coisas em movimento. Eu as vi agindo. Palavras criam atmosferas, campos elétricos, cargas. Já senti elas atuarem. Plavras conjuram. Eu tento não ser descuidada com o que enuncio, escrevo, canto. Eu tenho cuidao com ao quê eu dou voz. —Toni Cade Bambara

vessel: um recepiente (como um casco, garrafa, chaleira, xícara, ou cumbuca) para conter algo uma pessoa em quem alguma qualidade (como graça) é imbuída uma embarcação maior do que um barco a remo; especialmente: navio um tubo ou canal (como uma artéria) em que um corpo fluido é contido e transmitido ou circulado um tubo condutor no xilema de uma planta vascular formado pela fusão e perda das paredes terminais de uma série de células Mais que carne, um corpo - seu "pulso e coração pulsante."

Tenho revisitado o que a beleza enquanto método pode significar ou fazer: o que talvez possa abrir, romper, tornar possível e impossível. Como poderíamos carregar conosco o conhecimento da beleza e fazer novos mundos.

Com todo o trabalho que meus pais tiveram para entrar e se manter na classe média, precariedade e mais que precariedade permaneciam. Essa precariedade se parecia e era sentida como invernos sem aquecimento porque não havia dinheiro para o óleo; buracos nos tetos, paredes e chão, danificados por água, cujo custo do conserto não podíams pagar; o medo e a realidade de que a eletricidade e outras necessidades fossem cortadas por não estarem em dia; medo da casa ser embargada porque não havia dinheiro algum, ou não o suficiente, para pagar os impostos sobre propriedade. Mas através de tudo isso e mais, minha mãe tentou fazer um pequeno caminho através do vestígio. Ela trazia beleza para aquela casa de todo modo que podia; trabalhava a alegria, e ela fez momentos habitáveis, espaços e lugares em meio a tudo que não era habitável ali, na cidade em que morávamos; na escola que frequentávamos; na violência que víamos e sentíamos dentro de casa enquanto meu pai estava vivo e fora dela, no mundo branco maior antes, durante, e depois de sua morte. Apesar de não ser parte de nenhum movimento negro organizado, com exceção do modo como a própria vida e mente são organizados por e posicionados para apreender o mundo através da visão da porta e da antinegridade, minha mãe era politicamente e socialmente astuta. Ela estava afinada não apenas a nossas circunstâncias individuais mas também a essas circunstâncias como uma indicação de, e como se relacionavam, ao mundo antinegro que estruturava nossas vidas todas.

Morávamos em uma cidade que usava e odiava e temia sua população negra. Cresci em Wayne, Pennsylvania, em uma intersecção de quatro mãos: gente branca rica em três direções e um pequeno bairro negro na outra. Um dia luminoso e ensolarado de verão, quando eu tinha oito ou nove ou dez anos, a polícia de pelo menos duas cidades, mas acho que de três, baixou e sitiou meu bairro. Múltiplos carros de polícia bloquearam nossas ruas porque uma mulher branca tinha relatado que viu um homem negro dirigindo uma perua através do centro de Wayne com um rifle visível na traseira. O homem negro era chamado Chicki Carter - e ele era na realidade um garoto, de dezessete ou dezoito anos. Ele era amigo de meu irmão Stephen. O rifle era um ancinho - parte do conjunto de ferramentas que Chicki usava no trabalho de jardinagem que estava fazendo naquele verão para conseguir dinheiro. Nos reunimos em frente a nossas casas, nas calçadas, e na estrada; corremos atrás dos carros da polícia; e testemunhamos e insistimos bem alto que Chicki não havia feito nada de errado. Naquele dia, embora dano tenha sido causado, ao menos não foi dano fatal imediato.

Sabendo que todo dia que eu saia de casa muitas das pessoas que eu encontraria não me achavam preciosa e me deixaríam saber, minha mãe me dava espaço para ser preciosa - como em "vulnerável", como em "querida". Foi através dela que aprendi pela primeira vez que a beleza é uma prática, que a beleza é um método, e que um vessel também é "uma pessoa em quem alguma qualidade (graça, por exemplo) é imbuída". O livro da minha mãe era Dark Symphony: Negro Literature in America ["Sinfonia Negra: Literatura Preta na America"]. Foi dado a ela pelo meu irmão Stephen. Há uma inscrição nele, como em todos os livros que dávamos uns aos outros: "Feliz Aniversário, Para Mamãe, Amor Stephen, 3/2/70." Nas páginas do livro há uma lista em um pedaço desgastado de papel - o topo da lista está desbotado pelo sol e está desintegrando. A lista é na cursiva ágil de minha mãe - a letra que ela usava quando estava tomando notas para ela mesma. Já a letra da minha mãe para o mundo era meticulosa (como na nota para mim na primeira edição de Beloved ["Amada" - Toni Morrison] que ela me deu no meu aniversário de vinte e três anos). Com rebeldia contra as freiras da West Catholic Girls que tentavam controlar todos os aspectos de sua vida escolar, minha mãe havia criado sua própria grafia maravilhosamente ornada. Esta lista em particular está escrita no verso de um formulário que ela reciclou de seu emprego em recursos humanos na Sears, Roebuck e Co., uma folha de papel azul claro que rasgou em tiras para utilizar como marca-páginas: um hábito para a vida toda inoculado em uma filha da Depressão - aproveite tudo, não desperdice nada. A lista:

• Before the Mayflower ($3.95) [Lerone Bennett] • Malcolm X: The Man and His Time ($5.95) [John Henrik Clarke] • *The Negro Handbook ($8.95) [Ebony Magazine] • A Pictorial History of the Negro in America ($4.95) [Langston Hughes] • What Manner of Man ($4.95) [Lerone Bennet] • This Child’s Gonna Live ($4.95) [Sarah E. Wright] • *Contemporary Art in Africa ($7.25) [Ulli Beier] • Black Political Power in America ($6.95) [Chuck Stone] • Black Power U.S.A ($5.95) [Lerone Bennett] • The White Problem ($6.95) [Ebony Magazine] • Confrontation: Black and White ($6.95) [Lerone Bennet] • To Be Young Gifted and Black (Lorraine Hansberry) ($6.95) • Black in White America ($5.95) [Leonard Freed]

O marca-páginas marca o início de "Esther", em Cane ["Cana"] de Jean Toomer. Eu era um vessel para todas as ambições que minha mãe tinha para mim - ambições que encontraram suas formas próprias.

Minha mãe me fez um vestido de algodão roxo com apliques de tulipas roxas e lilás. Ela tentou, durante vários verões, me ensinar a costurar: bordado, ponto cruz, ponto baixíssimo, apliques. Ela falhou. Nós falhamos juntas. Ela tinha uma linda e velha máquina de costura Singer operada por pedal, e quando você abrias as gavetas rasas ao longo do topo elas estavam repletas de fio de boradado em cores brilhantes de diferentes pesos. Eu costumava adorar olhar para eles. Eu arrumava e desarrumava os fios, empilhava seus dedais, perturbava a sua ordem.

Quando ela estava morrendo, minha mãe ainda fazia ornamentos natalinos à mão. Foi um choque ao reencontrar os corações de feltro vermelho presos por alfinetes retos, o globo de feltro preto com seu próprio arranjo de alfinetes - alfinetes ordinários de cabeça chata, cabeças redondas vermelhas e brancas e cabeças marrom. A simetria da minha mãe: até mesmo os alfinetes tortos tem lugar. Foi um choque reencontrá-los novamente - do modo que a beleza choca. Mas, ainda mais. Do que é feita a beleza? Sempre que possível atenção a um tipo de estética que sempre que possível foge à violência - mesmo que apenas no perfeito arranjo de alfinetes.

Eu continuo a pensar sobre a beleza e seus conhecimentos. Aprendi a ver na casa de minha mãe. Aprendi a como não ver na casa de minha mãe. Como limitar minha visão para aquilo que pode ser controlado. Aprendi a ver em ângulos discretos, planos, tramas. Se o teto estava caindo e você não podia fazer nada a respeito, o que você poderia fazer é cultivar e arranjar peônias e tulipas e zínias; cortar forsíntias e hortênsias para trazê-las para dentro.

Minha mãe me presenteou com o amor pela beleza, um amor pelas palavras. Ela me deu todo livro negro que era publicado - e em sua prática, aniversários sempre incluiam presentes para o corppo, presentes para a mente, e presentes para a alma. Um desses livros era The Salt Eaters ["Os Comedores de Sal"], de Toni Cade Bambara, em que Bambara, na dedicatória, agradece a sua mãe, "que em 1948, tendo me encontrado sonhando acordada no meio do chão da cozinha, lavou ao meu redor." Naquela dedicatória, eu vi algo que minha mãe faria; eu vi algo que ela havia feito. Minha mãe me deu o espaço para sonhar. Por dias inteiros de cada vez, ela me deixava com e para as palavras, enrolada no parapeito de uma janela da sala, lendo e imaginando outros mundos, livre de interrupções.

Alguns dos livros que li naquela janela: The Collected Poems of Paul Laurence Dunbar [Paul Laurence Dunbar]; The People Could Fly [Virginia Hamilton]; Dark Symphony: Negro Literature in America; Jane Eyre [Charlotte Bronte]; Bright April [Marguerite de Angeli]; The Life of Ida B. Wells: The Woman Who Killed Judge Lynch; Roll of Thunder, Hear My Cry [Mildred D. Taylor]; Little Women [Louisa May Alcott]; Song of Solomon [Toni Morrison]; The Life and Times of Frederick Douglass [Frederick Douglass].

Aquela janela era minha válvula de escape - um pé de profundidade, três pés de largura, quatro pés de altura - meu pequeno lugar público/privado desde o qual comecei a me imaginar em outro mundo. A casa era uma velha fazenda, construída em 1804, e não haviam ângulos retos nela - tudo estava em uma encosta. O parapeito em que eu me sentava dava vista para o quintal de trás. No verão isso significava cerejas e marmelo, maçãs silvestres, ameixas verdes, quatro arbustos de peônias, um enorme salgueiro-chorão que foi atingido por um raio, e para além a estrada chamada Radnor Street Road. Também havia uma horta onde cultivávamos tomates, milho, mostardas e couves, rabanetes, repolho crespo, cenouras, amiúde variedades de alfaces, pepinos, berinjelas, abobrinha, pimentos doces e pimentos picantes, e mais. Às vezes a casa estava fria, e então as pilhas de jornais de minha mãe se tornavam toras de lenha. E apesar de isto ser um sinal de que não havia dinheiro para o óleo, havia uma arte em fazer as toras de papel ajeitadas de minha mãe: enrole o papel, meta para dentro uma ponta, enrole um pouco mais, dobre a outra ponta. Assim eles não se desfazeriam. Assim nós não nos desfazeríamos.

A beleza é um método: ler no parapeito da janela correr atrás da polícia uma lista em um pedaço de papel em um livro o arranjo de alfinetes no pano a habilidade de fazer do jornal lenha Essa atenção a uma estética negra me fez: me moveu do parapeito ao mundo.

Originalmente publicado na edição do Inverno de 2020 de Brick: A Literary Journal.

Christina Sharpe é professora no Departamento de Humaniodades da York University em Toronto, e Distinta Professora Visitante na Ryerson University. Ela é autora de dois livros, In the Wake: On Blackness and Being (2016) e Monstrous Intimacies: Making Post-Slavery Subjects (2010), ambos publicados pela Duke University Press. Ela está atualmente trabalhando em uma monografia: Black. Still. Life.