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E eu com isso? 2023

Esta é a tradução do texto principal da publicação de mesmo nome, que você pode conferir em inglês aqui.

Em Abril de 2015 enviei uma carta digitada, por e-mail, para meu colega de turma no curso de Artes Plásticas da Universidade de São Paulo (USP) Alexandre Rocha da Silva. Isso pouco depois de atender sua banca de conclusão de curso no Museu Afro-Brasileiro, Mulatos envergonhados: representação fotográfica do negro "liberto" pelas lentes da Photographia Americana (1865-1885).

Eu também estava prestes a me graduar, e partilhei ali minhas ansiedades com o mundo que não aguardava, já engolia. O capital, a elite, o medo, a verdade da arte.

Dois dias trás, lhe enviei uma mensagem pedindo para retomar uma conversa que, ao reler a carta e sua resposta, me dou conta não ter acontecido: o que eu queria mesmo era falar sobre raça. Me sentia pressionada e confusa, na época, ao perceber que haviam pessoas que me tratavam por negra, e pessoas que me tratavam por branca. E o Alexandre, bem, ele se parecia comigo. Encontrei no meu HD externo os dois .docx que trocamos, e um .txt separado: “resto da carta do Alexandre - negritude”. Nunca enviei a parte que importava. Me envergonhei.

Alexandre, você provavelmente não vai responder minha mensagem antes que este texto tenha que ser escrito.

Mas essa conversa não é apenas nossa.

Caro Alexandre,

Estou espantada. Espantada com sua carta, de oito anos atrás, tão fresca na minha tela. Muito da graça de escrever é essa flecha que rasga o tempo, essa maré que transborda do outro lado que não é agora.

“Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que jogou hoje”. Mais e mais, esse dito vem pipocando nos meus ouvidos. Nas minhas narinas. Estou atiçada pela herança cultural negra, coisa que a Marina que te escreveu não sabia reconhecer ou dimensionar. Ela estava tremendo feito vara verde com o “mundo real” fora da universidade, e com muito medo mesmo de encarar a estratificação racial da sociedade, o racismo, ter que escolher facções, se posicionar, politizar o próprio corpo, put skin in the game. Olhar a si mesma e perguntar, e eu com isso?

Minha tia Edna repete muito essa frase. Descarta tudo que não afete seu dia-a-dia. A decolonização não faz que parem os boletos. Ela está para cá, o mundo para lá e a gente rala e corre e vive muito bem, obrigada. Cada um cada um, pra que perder tempo com essas minhocas da cabeça?

Ela é negra, irmã do meu pai, e decidi entrar em contato pelo mesmo motivo que enviei mensagens para você e outros amigos e colegas de pele escura: quero meter os dedos na racialidade. Me abrir para o que vibra na superfície e afeta as entranhas, para o que me toca e para o que nos toca, e como isso que nos toca está entremeado num tecido amplo e perverso que estrutura o mundo.

Nas nossas cartas, você me encorajou a viajar. “Viaje mesmo, conheça o mundo. Talvez assim você descubra uma maneira de transformá-lo.” A Marina que te escreveu, uma Marina quase largando o curso de artes, também está espantada de que deste lado da tela ela fez mestrado em Copenhague, onde, entre idas e vindas, vive como artista tem quase cinco anos.

Ela escreveu sobre a dificuldade de conciliar minha criação com a realidade elitista da universidade e a proximidade da arte contemporânea ao capital. Sobre o desgosto com o mercado, e o desejo sufocado de praticar uma arte revolucionária: experimental, earnest e socialmente responsável (comprometida com os caminhos do desejo, da construção psíquica).

Você abdicou do desenho em favor do caminho da teoria. Foi uma escolha consciente. Me escreveu: “Infelizmente, a arte contemporânea alimenta o capital. A mais subversiva delas não escapa disso. Por isso decidi calar a boca. Ou melhor, calar as mãos e a mente.” Eu via em você um par nessas preocupações. Via em você, na verdade, uma pessoa negra. E queria me ver em você, me vendo em você. Me perguntando se era isso que também sou: negra? É curioso que nos refletimos um no outro sem nos conhecermos muito bem.

Farejamos.

Eu primeiro: “Sinto que se estou no meio das artes plásticas é por uma sorte e uma aleatoriedade. Fui educada e tive um estilo de vida protegido, segundo os padrões da elite da qual meus pais (…) sempre almejaram fazer parte e por conseguinte desejaram que eu fizesse parte, me garantindo todo o luxo e conforto que eles mesmos não puderam ter. (…) minha educação foi o limite do esgotamento e do esforço produtivo de meus pais.”

E depois você: “Nossa realidade social é outra. Nossas famílias vieram lá de baixo. Talvez nossos amigos também. (…) Meus amigos estavam indo fazer uniesquinas, trabalhando no telemarketing pra fazer a faculdade. Meus pais não são formados. Não sei mesmo como fui parar nas artes. Foi sorte mesmo, sabia? Nunca botei fé que entraria na USP.”

Mulata envergonhada, optei pela via econômica, outra grande confusão: esta categoria falida chamada classe média. Fazem parte dela meus amigos, que estudaram em faculdades de elite. E eu também, que estudei na USP porque era o que meu pai poderia pagar – de graça. Mas aqui na Dinamarca não tenho dúvidas, sou rica mesmo. Apoio do governo para estudantes, emprego de meio-período, apoio para desempregados; habitar este conto de fadas dotada de um passaporte europeu me joga automaticamente para a classe alta da nossa realidade. E esse passaporte? Dádiva de meus avós maternos, que desembarcaram de Trás-os-Montes ainda pequenos e nunca mais pisaram fora do Tatuapé, em São Paulo.

Aqui também não tenho dúvidas sobre meu corpo, sou racializada. Aceito que me chamem pessoa de cor. Palavras que me doem. Me fazem perguntar, que outras dores eu devo sentir, e não senti? Que outras dores uma pessoa como você sente? Por que essas dores parecem ausentes na trama fina da minha história? Talvez por isso minha grande dificuldade de me dizer negra. Não querer me sujeitar às dores que faltam.

Que é o que, penso agora, está tão presente nas pessoas com quem convivo. Esse medo. Essa incapacidade. Não encontrei ainda um modo de transformar o mundo, mas poder se sujeitar às dores parece essencial. Como em nossa troca: “te dou metade da minha, você me dá metade da sua.”

Uma mentora me ofereceu um verso de Cartola: “preste atenção, o mundo é um moinho”. Outro, me alerta que este moinho tritura gente pobre, preta, periférica; gente trans, bicha, travesti. Um moinho que ainda está vivo, operante. Que a realidade econômica de cada território está imbricada com uma lógica de extração de valor, de roubo de energia, de corpos trabalhadores, que esses corpos são desumanizados por um sistema de valores culturais que cria as condições de sua exploração, que enriquece em fluxo ascendente a imaginação neoliberal que fabrica países de contos de fadas.

Sabe aquelas imagens de vastos servidores subterrâneos, onde a internet mora? O que a gente não vê é a quantidade de energia que isso demanda, drena. Acima da terra também é assim; vê e sente quem está esganado entre as pedras do moinho. Como explicar isso para pessoas que partilham do delírio capitalista, globalizado, neoliberal? Que não se deram conta de que atuam em um espetáculo sinistro? Que se perguntam “e eu com isso?”

Suas palavras, um omen: “Ora, o mundo está cheio de gente que acha que “o mundo é assim”. Não dá para o mundo ser assim, infelizmente. Não preciso te dizer que o mundo está com os dias contados. Enquanto os grandes leilões de arte estão acontecendo, enquanto a SP-Arte [São Paulo Art Fair] compra o mundo inteiro das artes, tem gente passando fome.” E os tais valores culturais que permitem isso tudo? Estão aqui. Estão em cada corpo. Muda a dose.

Exercito a palavra branquitude. Tenho experimentado esta, e outras palavras que de repente vibram repletas de significado nos meus lábios. O esqueleto cultural que permite a dominação material-econômica, arrisco definir. Não interessa a cor da pele. Sou parte disso. Sou parte da violência do mundo. Sou um vetor de violência, também. Violência, potência, vitalidade. Tenho procurado modos de implicação, comprometimento. Me responsabilizar pela minha energia. O que significa ocupar o espaço de privilégio ao qual eu tenho acesso? Morar na Dinamarca me torna aliada da branquitude? E se, aliás, a minha dose de branquitude já for alta para que seja possível eu viver aqui? É possível nutrir uma herança cultural negra que precisei ir até o outro lado do mundo para sentir falta? E se eu seguir meu caminho abraçando o conforto afforded para este território via um processo de desumanização da maioria da população mundial. Como manter a intencionalidade?

Em 2015 escrevi o que sinto em 2023: “Me incomoda muito que a posição de artista seja uma posição tão colada às instâncias de poder (…). Me incomoda pensar que para que meu trabalho se sustente enquanto tal, um dia tenha que recorrer a estratégias moralmente questionáveis, do cubo branco ao quem indica. Me incomoda como apenas aquele que está confortável materialmente pode se dedicar à arte, me incomoda que eu em certa medida esteja no limite dessa posição. Me incomoda que meu trabalho não possa se comunicar com um público para além dessa mesma elite, para qual estou caminhando como que empurrada e como que cegamente, mas com uma boa dose de desejo pelo bom e velho “poder fazer o que quiser e não ter que se preocupar com dinheiro”. Desconfio da capacidade ou vontade dos professores do CAP [Departamento de Artes Plásticas], e de muitos colegas, a considerar essas questões. Mas agora que vou me formar, sinto necessidade de ao menos saber no que vou estar me metendo, se quiser oficialmente ser artista, e por quais meios isso pode se dar. E fazê-lo conscientemente.”

Este ano tenho trabalhado com confetes. Com samba. Estou atraída pela negritude que me falta e que encontro nos versos. Pela força de arrastão da tristeza que vira força, alegria. O “amar é sofrer” do Xangô de Vinícius de Moraes que agora é meu também. Pela resistência, pelo esforço ativo de expansão das “margens do meu limite” de Cravo e Ferradura, que é de Clarisse Grova e meu também. E pela performance de Marcelo Evelyn, “De repente o mundo ficou preto de gente”. Gente juntinha. Gente em conflito, em amor, em tesão. Gente que não tira o corpo fora. Que sustenta as relações. Partilha as dores. E as euforias. Gente que se deixa expandir pelo outro a quem se abre. A vida, indivisível. Meus confetes são feitos de imagens que cristalizam a violência sistêmica. Olho para essas imagens e me vejo esboçada nelas, me pergunto “e eu com isso?”. Como participo da violência do mundo? Meus confetes são celebrações, são vetores possíveis para essa energia que eletriza o ar que invade nossos corpos. Estou inquieta. Precisamos nos manter inquietos.

Alexandre, estou vivendo aqui no meio do problema. As aulas de redação ensinavam que é preciso propor soluções práticas nesta altura do texto. Mas este é o volume do meu fôlego, e ademais quando solucionamos problemas corremos o risco de cometer atos hediondos. Em poucos minutos vamos nos falar no Whatsapp – fico na dívida da carta de próprio punho. Estou presente. Estou animada. Essa conversa continua. Já fazemos parte dela.

Um grande beijo, de sua amiga e companheira de caminhada, Marina D.